Opinião: The Black Mamba, Arte e Língua Portuguesa

08-03-2021

Não fiquei minimamente surpreendido com o ataque feroz que vejo proferido nas redes sociais contra os THE BLACK MAMBA por terem ganho o Festival da Canção com uma música cantada em inglês. Já se estava mesmo a ver que se iria repetir a habitual síndrome de criticar sempre o que é nosso. Triste! 

Por Sérgio Costa Martins, músico

Os THE BLACK MAMBA são uma excelente banda portuguesa, composta por excelentes músicos portugueses que, tal como a nossa cultura, bebem de tantas outras culturas e tornam tantas influências globais tão unicamente nossas. Ao contrário de tantos povos que falam quase exclusivamente as suas línguas maternas, os portugueses têm um fator cultural ótimo - falam bem diversas línguas. 

E se THE BLACK MAMBA fosse uma banda com membros portugueses, angolanos, brasileiros ou o que quer que seja, estaria aqui a escrever exatamente a mesma coisa porque o que está em causa no Festival da Canção é a música que vai representar o nosso país na Eurovisão. Música. Não vai a concurso a nossa língua. Vai a concurso Música. Arte. A composição, os acordes, a manifestação da inspiração... 

Definam a arte e a música como queiram, mas não a reduzam a uma língua. Música é uma linguagem universal, entendida, apreciada e desfrutada por todos, no mundo todo.

Os tops nacionais de vendas pululam com sonoridades de inspiração africana. O Carnaval em Portugal é celebrado ao ritmo do Samba e apesar do frio que se faz sentir em Portugal é dançado com a muito escassa roupa mais adequada ao clima do Rio de Janeiro. E então? África e Brasil não podem ser incorporados na nossa cultura? Claro que podem.

Os THE BLACK MAMBA não podem representar Portugal com uma música cantada em inglês? Claro que podem. Porque não? Vamos limitar a excelente música que se faz em Portugal à língua? Porque raio é que devemos limitar a nossa cultura musical ao que quer que seja? Não, não devemos, porque a música e a arte em geral não se devem limitar a nada. Do contrário são exemplos as ditaduras de esquerda e de direita. E a arte, isso, nunca aceitou nem aceitará nunca.

Os ABBA ganharam o Festival da Eurovisão com o tema Waterloo cantado em sueco? Cantaram em inglês. Acho óptimo. Já passaram sei lá quantas décadas e eu ainda canto o tema. Se fosse em sueco acho que não me lembraria nem de uma palavra para além de "Waterloo" (que, by the way, fica na Bélgica).

Sejamos grandes. Não nos limitemos intelectualmente. Para que ninguém me venha dizer que sou parte interessada, deixo já claro que sou parte da família MAMBA. Fiz uma digressão com a banda, criei amizades profundas com os músicos, técnicos, músicos de apoio, managers. 

E sinto-me privilegiado por ainda hoje manter essa amizade com pessoas grandes, músicos de excelência, seres humanos fantásticos que em plena pandemia deitaram mãos à obra e criaram uma música para nos representar, para mostrar, agora que ganharam, a boa música que se faz em Portugal à Europa. Não ficaram quietinhos escondidos atrás de perfis do Facebook a mandar bocas incultas como jumentos com o poder de um teclado. Trabalharam, para eles claro, mas também para nos premiar com música. 

Se se gosta ou não é outra história, temos todos o direito de gostar ou não. Mas não temos direito nenhum de reduzir a nossa cultura a uma língua.

E todos esses grandes defensores da limitação da nossa cultura à nossa língua, onde estão todos quando não dão uma mínima chance ao tanto talento musical que existe em Portugal que se tem que limitar a tocar covers, na sua generalidade em inglês, em bares, a ganhar miseravelmente, porque ninguém os vai ver tocar ao vivo os seus originais? 

Onde estão quando os donos dos bares não permitem que toquem os seus originais porque o que a malta quer é ouvir os grandes êxitos internacionais? Sabiam disso defensores da língua de Camões? Sabem que os jovens músicos têm que cantar em inglês em Portugal para ganhar não mais do que uns trocos? Sabem que há uma quota para passar música portuguesa nas rádios em Portugal? Onde estão vocês todos para defender a Cultura em Portugal? É que se comprassem música portuguesa não haveria necessidade de quotas. 

Mas enfim, também é cultural sermos tão críticos com os outros e tão benevolentes com nós próprios. Triste. Muito triste.

Sérgio Costa Martins (Músico)